sábado, 23 de março de 2013

Crônicas de Kaychiro: Os Filhos da Penumbra - Prólogo


Em um continente, onde a guerra se alastra como um vírus, os filhos da penumbra tentam sobreviver escondendo-se de tudo e todos. Amaldiçoados por todas as raças de Ábani, eles se abrigam em um lugar familiar a eles, nas sombras. Mas até quando?

Atualização: Foram implementados alguns trechos de trilha sonora para ajudar na imersão durante a leitura do texto.





Eram poucos os momentos em que ela havia sentido uma pontada de felicidade em seu coração, se é que ela tinha um coração, ou pelo menos, um coração como o de todos os humanos. Embora sua aparência semelhante com um, cinco dedos em cada mão, dois olhos, um nariz. Alguns detalhes como seu cabelo branco neve e seus olhos prateados como uma medalha polida de váhrix, afastava dela qualquer alma viva por onde quer que passasse. Essas características não a faziam uma criatura feia, muito pelo contrário, ela sempre fora muito bela, mesmo andando apenas em trapos como já havia acontecido muitas das vezes que tinha que fugir e esconder-se. Aquela aparência díspar e única não a tornava um monstro, mas revelava exatamente sua origem, e isso, ironicamente, fazia as pessoas encará-la como se fosse um. Apesar de todo o sofrimento que passara por seu corpo, Eladriel, como ela própria havia se batizado, acreditava em seu interior que um dia conseguiria encontrar descanso e paz para si mesma, naquele mundo cruel e impiedoso, o que ela não sabia é que esse dia ainda não havia chegado...

...definitivamente não havia chegado.

Ela passara uma situação parecida como aquela no passado, em sua infância, mais precisamente. Era uma vaga lembrança nublada em sua mente. Já faz tanto tempo. A única imagem que permanecia era a grande silhueta escura sádica e sorridente que se movimentava na escuridão, tocando-a. Isso foi há muitos anos, em outra vida, possuía até mesmo um outro nome e, mesmo assim, ainda podia sentir o forte inebriante cheiro de mofo, suor e vinho-mel nele.

Naquela noite havia quatro silhuetas trevosas como aquela do passado, com olhares sádicos e sorrisos sinistros, imóveis ao redor dela num cômodo umbroso empoeirado.
O reflexo das chamas, que consumiam a aldeia do lado de fora daquele estabelecimento, dançava funérea ao som de gritos e guinchos de desespero na ponta da lamina que um dos homens empunhava.

Eladriel sentia gosto de sangue em sua boca onde um deles esmurrara derrubando-a no chão. Apenas terminem isso rápido, por favor. Suplicava em sua mente.
De certa forma ela não se importava mais com a dor, estava acostumada com o gosto de seu próprio sangue. Sentia o ar frio noturno invadindo sua roupa rasgada para beijar seu corpo. Seus pelos quase que translúcidos eriçavam uma vez mais com o terror da situação.

As quatro figuras escuras aproximavam-se rugindo como animais, cuspindo palavras, um para o outro, em uma língua que ela mal podia entender. Eles são homens ou animais?Apesar da aparência humana ela não sabia dizer o que eram na realidade, homens se transformam em animais quando vão para a batalha, mas sabia que o que quer que fossem eram menos abominados que ela. Empurravam-se para decidir qual deles arrancaria o primeiro pedaço de sua carne alva. Um arregalava os olhos com o brilho de chamas dançantes, o outro molhava os lábios em uma expressão esfomeada, o terceiro, com um sorriso brincalhão, desamarrava o gibão no canto mais escuro do pequeno quarto, enquanto o quarto homem avançou e puxou de forma brutal as ruínas do que restou de suas roupas. Seu corpo ergueu com a força descomunal do homem. Suas vestes transformaram-se em trapos que se espalharam por todo cômodo e ela caiu com um baque abafado, completamente nua, sobre o piso gelado de madeira Pinhopedra. Ela se encolheu mais na tentativa de cobrir sua nudez do que se proteger do frio. As chamas crepitavam através dos grossos vidros da janela do quarto, iluminando metade das faces de cada um dos homens famintos, com olhares ainda mais famintos. Ela rastejou para a outra extremidade do ambiente, para as sombras. As trevas abraçaram seu corpo pálido como uma mãe abraça um filho que retorna para casa. Um dos soldados puxou-a com força por seu tornozelo direito trazendo-a novamente para a região mais clara. Se eu resistir, eles vão me bater ainda mais. É isso que eles fazem, é isso que eles sempre fizeram. Pensou, com as unhas cravadas no chão. A dor lacerante atravessou seu corpo quando sentiu as unhas se desprenderem da carne quando o homem puxou-a com mais força. Gemeu de dor e experimentava o tremor dominar seu corpo. Uma das sombras pegou-a pelo pescoço. Seu punho era tão grande e forte que podia quebrá-la ao meio com a facilidade que quebraria um graveto. Sentiu um segundo homem sobre ela, e aquele que agarrava sua garganta sacudiu sua cabeça proferindo para os outros uma zombaria qualquer sobre seu cabelo. Os outros riram alto. Um fio rubro escorria do nariz e esparramava-se no lábio e descia até o queixo. Com o punho, ele empurrou violentamente sua cabeça contra o chão. Aquilo fez um eco dentro de seu crânio.



Ela podia ver Emilia caída nas sombras ao fundo, a boneca de pano de Trys, filha única da mulher que a acolhera, dera-lhe o que vestir, comer e um trabalho para fazer. A senhora corpulenta estava sempre mandando-a fazer alguma coisa. Eldry tire isso daqui. Eldry ponha isso alí. Muitas vezes era bem cansativo. Eladriel não se importava, era algo que lhe trazia um calor dentro de seu peito, algo reconfortante. Então, ela fazia com muito gosto e Dona Kyna a deixou ficar o tempo que bem entendesse. Adorava as manhãs em que acordava com o delicioso cheiro de pão de cendra e café forte que a gentil senhora preparava para ela, Trys e seus clientes. Ela espreguiçava-se e descia as escadas, farejando o ar, sorrateira como um gato, para descobrir a mesa forrada de massas e doces que ela nunca imaginara existir. Dona Kyna sempre acordava antes de todos e era metódica com os horários e com o preparo de suas receitas, tudo deveria estar em completa ordem sempre que programado. Isso Eladriel aprendeu com duas ou três pancadas da dura colher de pau da mulher. Ela não gostava muito dos clientes pois, sempre que chegavam, ela tinha de se esconder. Mas aquilo era um preço baixo a ser pago pela vida pacata que ela tinha encontrado ali. No inicio foi difícil convencer Trys de que ela não era uma aberração, a pequena garota vivia fugindo dela, até que certa vez Eladriel encontrou a boneca Emília rasgada e, com um pouco de linha e alguns remendos, deixou-a como nova. Desde então a pequena não saiu mais do seu pé. Seria tão bom se todas as diferenças pudessem ser resolvidas com um pouco de linha e remendos - lembrou. Era a mais próxima que Eladriel poderia chamar de melhor amiga, afinal as duas, apesar da diferença de idade, tornaram-se inseparáveis.

Como a vida já havia lhe ensinado outras vezes - algo tão bom não dura para sempre, Eladriel - um dia aquela calmaria seria levada por uma tempestade, dessa vez, foi uma tempestade de espadas e fogo.

Lágrimas transbordavam e seus olhos estavam pregados em Trys que permanecia debruçada no chão sobre uma poça escura, com o olhar que ia além do horizonte, segurando Emília com a mão esquerda, que tinha um corte na barriga por onde a espuma esparramou-se. Olha Eladriel, foi a mesma coisa que fizeram com as entranhas da Senhora do pão de cendra. Eladriel estava farta de todo aquele sofrimento. Ela queria esconder-se, enfiar-se em um buraco escuro para nunca mais sair e lá nunca mais sofrer, talvez ela quisesse morrer. Desejava voltar para as trevas, ser consumida por seus tentáculos escuros e frios. Perguntava-se o motivo de sua existência, mas a pergunta era seguida de um grande silencio vazio em sua cabeça. Uma vez tentou tomar a própria vida, mas aquilo iria doer, então ela perdeu a coragem e desistiu da idéia rapidamente.

Através da janela podia ver a lua, a Gêmea Branca brilhando pálido sob o céu índigo com um halo dourado ao seu redor. Ao lado do pequeno e brilhante satélite, o Irmão Negro aproximava-se, escuro como azeviche, ansioso para encobrir a gêmeo menor. Está trazendo sua sombra sobre mim mais uma vez. Ela estava acostumada e se sentia segura nas sombras, afinal, era de lá que ela tinha vindo, não era? Lembrou de como o homem robusto agredia sua mãe por ter fugido e permitido que uma criatura como ela tivesse nascido. Talvez ele tivesse razão. Apesar dos cochichos e olhares de soslaio que as pessoas não evitavam lançar sobre ela, sua mãe sempre estava ao seu lado protegendo-a de seu pai e das outras pessoas, que preferiam vê-la morta a viver entre eles naquele distante vilarejo. Muitas noites, quando se deitava sobre rocha, palha, lama ou, raramente, em um colchão, tentava a todo custo lembrar-se da sensação de quando sua mãe mergulhava os dedos em seu cabelo afagando o emaranhado de fios brancos que cobriam sua cabeça e emolduravam seu delicado rosto de lábio avermelhado como pêra-coração. Muitas vezes, era em vão, em outras, ela acabava sonhando com aqueles dias - Mãezinha. Normalmente acordava tateando em busca da mão carinhosa, porém, era apenas o vazio que sentia ao fechar os dedos carecidos. Após muitos anos fugindo e se escondendo em buracos sujos e escuros ela pode reviver aquele carinho que tanto gostava ao lado de Ulfrick, o espadachim. Eladriel, em sua concepção, julgava aqueles os melhores momentos de sua vida. Apesar de algumas vezes sentir-se culpada por achar o carinho de Ulfrick melhor que o de sua mãe, no geral, ela estava feliz como nunca ao lado dele, até que tudo desmoronou, novamente. Isso tudo já foi... foi tudo levado... como poeira ao vento.



Tentou afastar as lembranças e acabou voltando ao quarto escuro. Sua face estava esmagada contra o chão e sentia dores nos joelhos, punhos, virilha, em seu rosto e nas pontas dos dedos. O mundo parecia chacoalhar e a dor rastejava por todo seu ser a cada arremetida do homem sobre ela. Não sabia se era o segundo ou o terceiro. Tentou se virar, mas parecia haver uma montanha sobre si. Ainda não terminou, fique quieta. Por que eles simplesmente não me matam? Por que sempre me machucam e me abandonam para sofrer? Pensou, sentindo seu peito ser atacado por uma intensa angústia.

-Olha só Agogh, a vadia acordou! – comemorou o homem sobre ela.
-Ah, maldito, teve mais sorte que eu. – Agogh respondeu afivelando a brúnea marcada pela batalha. – No meu turno parecia estar fodendo um maldito tronco de pinhopedra. – completou, fazendo risos ecoar dentro da taberna enquanto do lado de fora só havia gritos, lamentos e morte.

Lágrimas involuntárias brotaram de seus olhos e rolaram face abaixo até se desprenderem do rosto e saltarem para o solo empoeirado de madeira coberto com sombras. As lágrimas pareciam dançar no chão. Lembrou da canção que sua mãe cantava para ela enquanto a acariciava. – Era uma casa... muito engraçada... não tinha teto... não tinha nada... – cantou entorpecida pela dor, vendo o mundo girar e se despedaçar nas trevas. Não conseguia distinguir a realidade do pesadelo, tudo havia se tornado uma coisa só.

Foi quando ela viu aquilo dentro da escuridão, aqueles olhos, olhos que estavam sobre ela, a todo tempo estavam... há muito tempo estavam... esperando... e, então, aconteceu: o mundo tornou-se negro e havia apenas carne sangue e gritos de desespero.
Continua.

End music:




Um Afogamento

É o relance da reflexão
Formando padrões nos teus olhos.
É um revisitar irado
Com todo segundo esvaindo-se.

A ressaca veio para me levar
Guiada pelo sol escaldante.
Veja tudo ao nosso redor.
Veja tudo o que fizemos.

Por favor, alguém.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.

Há uma fresta pequenina.
Os enxames de gafanhotos cobrem o céu.
Talvez eu simplesmente desapareça ou se ao menos pudesse
Manter a minha cabeça acima da maré.

Por favor, alguém.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.

9 comentários:

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    1. Tudo bem Jefte? Espero que tenha gostado. Logo mais vou postar mais capítulos dessa série. Fica ligado aqui no blog.

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  2. Como sempre se superando Filipe, parabéns! Ansioso pela continuação!

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    1. Valew Brunão, obrigado pela leitura. Fica tranquilo, os próximos capítulos já estão no forno.

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  3. Nossa!! eu fiquei surpreso, como o titulo realmente e a historia se mantiveram unidos apesar da dor e sofrimento de Eladriel e como foi focado todos os seus personagens , É digno de de um RETORNO rsrs eu sei que CRONICAS também tem segunda parte, Parabéns achei excelente...

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    1. Obrigado pelo comentário. Logo mais poderá conferir a continuação. :)

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  4. Devo dizer que está para se tornar um grande épico, sinto-me como estivesse vendo um trailer e logo em seguida vasculhando a internet para ver se já postaram um trailer 2 !
    Há tantas probabilidades nesta parte que arrisco dizer que não será fácil adicional um final lá pela página 102 ou 103 ! Aguardo.

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    1. Olá Cris, tudo bem? Obrigado pela leitura e pelo comentário. É verdade isso vai ser pano para a manga, tomara. kkk Obrigado pela força.

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