domingo, 5 de maio de 2013

Crônicas de Kaychiro - Os Filhos da Penumbra - Capítulo 01



- Hoje não temos nenhuma virgem para sacrificar, então a cavalgada rumo ao inferno será ainda mais agradável - Ironizou o capitão Bolton Boes na proa do navag, uma embarcação rápida tradicional da baía de Bardock. Era uma figura redonda e desajeitada que caminhava para todos os lados, com seu chapéu continental azul escuro, cuspindo ordens através de sua espessa barba amarela e escarrando muco de seu nariz que parecia uma grande batata vermelha. Permanecia indiferente à chuva que o atingia. Apenas continuava gritando e bamboleando com suas pernas finas.

Antares era um Deus furioso e estava sempre agitado, escuro, tempestuoso e faminto. Poucas eram as Galés que cruzavam as costas do colossal oceano e escapavam sem algum dano ou perda de tripulação.

Capitães cautelosos e corsários costumavam seguir um antigo costume, sacrificar uma garota virgem, para acalmar os ânimos do Deus. O ritual era sempre o mesmo: a garota era presa nua, mãos amarradas às costas, seus pés atados a uma pedra de ampa - uma rocha pesada, escura de um azul profundo como lápis lazúli, essa pedra pode ser encontrada em toda a costa leste do continente e é mais comum no arquipélago Indigon. As pálpebras da garota eram removidas cuidadosamente. Antares é um Deus ciumento, diziam, gosta que suas esposas tenham olhos apenas para Ele. Esposa D’Antares era o nome dado a essas infelizes garotas. A pedra de ampa era arremessada ao mar e afundava rapidamente, como uma âncora, levando a virgem até o fundo do mar raivoso. Lá ela permanecia eternamente, com o olhar pregado ao azul infinito, seus olhos eternamente admirando Antares. O capitão escrevia seu nome, com uma adaga de ouro, em uma pálpebra e o nome de sua nau na outra. As pálpebras da esposa, com os nomes, eram jogadas ao mar para selar o sacrifício e, então, Antares acalmaria sua fúria para a passagem do capitão e seu navio.

Muitos piratas e capitães dos reinos não possuíam belas virgens para lançar ao mar, mas muitos chegaram a jogar uma dúzia, ou duas, de rameiras para saciar o mar faminto antes de inçar âncoras e iniciar a travessia. Algumas vezes funcionavam, outras, nem tanto. Uma coisa era certa, toda embarcação possuía sua pedra de ampa como um amuleto.

Bolton Boes tinha sua pedra azul, uma dúzia de prisioneiros, quatro soldados de escolta e oito oficiais sob seu comando, mas nenhuma rameira e muito menos uma virgem que de bom grado jogaria ao mar naquela tempestade infernal. Aquilo era um grande problema.

A tormenta castigava o pequeno navio e era difícil saber de qual direção vinha toda aquela chuva. Parecia ser atingido de todas as direções, por golpes de vento carregados de gotas gordas que atingiam a face dos tripulantes como uma forte bofetada de uma donzela traída.


Havia doze homens acorrentados sobre o convés da galé, reunidos ao centro, todos ajoelhados com suas mãos atadas ao chão por grilhões de ferro pesado. Todo homem era acorrentado a um segundo, formando um total de seis duplas de prisioneiros. Kron estava entre eles, sentia seus punhos latejando onde o ferro enterrava-se na carne, fios de sangue escorriam por suas mãos, misturavam-se a água, e gotejavam por seus dedos inchados no convés encharcado e escuro. Suas costas doíam. Malditos sejam todos eles. Manter aquela posição, curvada, por toda a viagem com a embarcação agitando-se sob seus pés e a chuva que ensopava suas roupas, tornava aquilo ainda pior. Farpas atravessavam o couro de seu calção e penetravam em seus joelhos, eram como demônios espetando seus tridentes. Sangue, chuva e mar inundavam o piso, agitando-se, espumando e batendo de um lado para o outro, até uma onda escalar a borda falsa balustrada e lamber toda a sopa escura de volta para o mar. Como se não bastasse a postura torturante, a chaga em seu braço direito ardia, queimava e parecia mexer-se, alimentando-se de seu sangue. Veias escuras e profundas pareciam consumir a carne. Aquela maldição estava impregnada em seu braço e no lado direito de seu rosto. Arruinada, sua face direita era consumida por artérias negras como galhos de uma árvore seca que emolduravam o globo branco que fora seu olho. Os outros prisioneiros afastavam-se dele como se fosse um leproso. Não, é bem pior que isso. Lembrava-se dos comentários durante o embarque.

- Senhor, temos mesmo de levar, esse maldito? Por que não simplesmente o jogamos ao mar?- Perguntou um dos oficiais para o capitão Bolton, apontando para Kron, enquanto embarcavam os outros prisioneiros.

- Apenas cale a boca em faça seu trabalho, filho. Esse é um homem que não morreria com tanta facilidade, além disso, estamos seguindo ordens do reino, para que ele seja levado vivo até aquela rocha dos infernos. Nem gosto de imaginar o que Antares cuspiria de volta se jogássemos esse bastardo para Ele. - Respondeu Boes, com um riso que mais parecia um ataque de asma.

- Os Gêmeos que nos perdoem. Não gosto nem de imaginar esse tipo de situação. Já ouvi histórias horripilantes sobre esse Mar amaldiçoado – Observou Dub’s, o marujo caolho e magro como uma lança, ao recolher a prancha de embarque – Kraken’s gigantescos que devoram fragatas com uma única mordida.

- Eu já vi um Kraken! – Gritou Shif, o marujo de cabelo lambido. Cuspindo na mão para alisar ainda mais seu cabelo oleoso – Toda noite que entro em minha cabine sua mãe aparece de pernas abertas sobre minha cama, Dub’s. - Os marujos e o capitão explodiram em risos enquanto Dub’s fitava o chão, sem saber o que responder.  Os quatro soldados de Spartânia, que faziam a escolta de Kron, permaneceram calados. Alguns dos outros prisioneiros acharam graça, mas o bico da bota dos guardas logo a levaram embora.

Os solavancos ficavam ainda piores. Ao redor do barco ondas erguiam-se como montanhas para quebrar-se em seguida. A chuva e o vento caiam sobre eles tão intensos que era possível afogar-se mesmo estando fora do mar. O céu era negro e parecia refletir o humor do oceano. Dois Deuses furiosos. Relâmpagos passeavam através das nuvens e dedos caquéticos de cor púrpura serpenteavam entre elas, brilhantes. Em um segundo o mundo tornava-se claro como o dia e, então, a escuridão voltava seguida por um urro horripilante. Trovões que mais pareciam gigantes gritando blasfêmias em um dialeto terrível e esquecido pelo tempo. Gritos de guerra vindo das nuvens, terríveis, eram respondidos pelo estrondoso som das ondas que se quebravam uma sobre as outras e o assovio medonho do forte vento, um som de gelar o sangue.

O convés agitava-se. Vários raios caíam a bombordo e estibordo como faixas azuis brilhantes. Os marujos corriam de um lado a outro, amarrando, puxando, afrouxando, subindo e descendo. As velas tinham barrigas tão gordas que pareciam prestes a arrebentar. As tábuas do navag rangiam, chorando um lamento de medo para o capitão. Bolton Boes chicoteava seus poucos oficiais com mais ordens, tentando equilibrar-se na proa que subia e descia. Ao redor dos prisioneiros, quatro soldados reais de Spartânia envergando armaduras de aço escuro, elmos com crista vermelha, armados com lanças de cabo escorpião que cortariam a cabeça de um homem num piscar de olhos, permaneciam imóveis, silenciosos como gárgulas. Com postura ereta, empunhavam as longas lanças na vertical, apoiadas no chão em frente ao rosto. A cada brilho dos céus, a sombra deles era arremessada em direções opostas, mas os guerreiros permaneciam inertes. O elmo cobria completamente a face dos intimidantes soldados.


Era difícil pensar enquanto o mundo desabava, então, Kron tentava manter a cabeça vazia. Era impossível. As imagens daquela noite sempre voltavam a aparecer em sua mente. Aquelas garras afundando em seu braço, aquela face distorcida que a todo custo tentava devorá-lo, uma alma que outrora fora tão companheira. Irmãos de espada, irmãos de guerra. Terminava com sua espada penetrando na goela da criatura. Fitou as algemas de ferro que o prendia ao grilhão parafusado ao chão. Puxou. Resistentes demais. Tentava imaginar o que ele faria ao escapar, mas que chances ele tinha contra aqueles quatro soldados armado com aço da cabeça aos pés? O que faria em seguida com aquele mar de temperamento cruel? Seu corpo estava dolorido, desnutrido e parcialmente quebrado, a viagem de Spartânia até a baía de Bardock havia tomado todas suas forças e ele duvidava que nem mesmo uma espada conseguiria erguer tão bem novamente, não ali, não naquela situação. Lembrou-se da visão, perdeu seu olho esquerdo em Hardawn e isso prejudicaria suas habilidades, mas o quanto? Até onde se lembrava depois que a maldita noite caiu sobre ele e seus homens, quando foi capturado pelos soldados do Rei monstro, conseguiu retalhar três ou quatro antes de ser imobilizado. Três morreram, o quarto perdeu os dedos da mão esquerda, poupei apenas o polegar. Após isso, era tudo fragmentado e nublado em sua memória. Fechou os olhos e viu Maria, de costas, com seus longos cabelos castanhos ao vento, quase pode sentir seu perfume, uma mistura de narciso, sândalo e cravo.
 Brum estava em seu berço, agitado, mas silencioso observando com os grandes olhos azuis do pai. Myra estava agarrada ao seu braço direito. A garota não desgrudava do pai, e até mesmo nas aulas de esgrima fazia questão de participar. Então quando o dia veio, Maria, beijou a medalha de váhrix, com os símbolos dos três raios de Thundra, atada a uma grossa tira de couro, e afivelou o cinto em Kron.

– Seja honrado e justo com seu povo, meu senhor, seja humilde com teu inimigo e a sabedoria o guiará. Lembre-se, o julgamento cabe apenas aos Deuses. Que o raio, o relâmpago e o trovão de Thundra lhe tragam a vitória, guerreiro da tempestade. Sua esposa e seus filhos aguardam seu retorno a salvo.
Sentiu o suave beijo dela em sua fronte. Sobre ela havia dois círculos sobre um céu escuro: um círculo pálido à esquerda e outro negro, sombrio à direita. 

- MALDITO! - O prisioneiro atrás dele gritou e em seguida cuspiu em suas costas. – Deviam ter escutado o oficial e jogado esse merda ao mar, agora todos nós vamos morrer por causa dessa praga que ele carrega.
Kron sentiu o impacto do catarro do homem sobre suas costas. Fitou o prisioneiro sobre o ombro esquerdo com o olho bom. Tinha cabeça raspada com a tatuagem de uma grande rã sobre toda sua careca. Um assassino dos clãs da montanha. Preferiu ignorar o insulto.

- Pare de blasfemar, Pander, essa tempestade não tem nada a ver com ele, vamos acabar mortos por você abrir a boca. – Chamou-lhe a atenção Willan Shoes, o prisioneiro barbudo e magrelo que estava acorrentado a Pander, o rã.

- Fodam-se, você e sua cautela, Will, se quiserem me matar, que o façam. Teremos menos conforto na merda daquela rocha esquecida pelos Deuses do temos neste maldito pedaço de madeira. Pander retrucou com sua voz rouca.

Willan apenas abanou a cabeça reprovando a atitude do companheiro. Os outros prisioneiros trocaram olhares e se mexeram desconfortavelmente. Ladrões, estupradores, e assassinos, mas nenhum deles é pior que aqueles que os mandaram para cá. Kron sentiu Pander remexendo-se atrás dele. O rã aproximou-se o suficiente para sussurrar ao ouvido direito de Kron. – Eu sei quem você é, comandante. Foi uma bela queda que teve em sua vida. Como se sente depois de tudo isso? Viver lá no alto, apenas com as águias e, agora aqui, caçando migalhas junto aos ratos. – Pander rouquejou. – Soube o que fizeram com sua esposa. – continuou - Uma centena de soldados da guarnição do Rei monstro estuprou a vadia, sem falar da farra que fizeram com sua filha antes de espetar uma lança bem no meio do c...

A cabeçada de Kron fez a boca de Pander explodir em sangue e dentes. Isso doeu, mas ele mereceu. O rã foi lançado para trás e só não caiu de costa por estar atado aos grilhões no chão. Os outros acorrentados olharam espantados tentando entender o que estava acontecendo. Willan agitou-se nas correntes e tentou acudir o outro prisioneiro empurrando-o com o ombro. Pander voltou a si. Sua boca era apenas vãos e dentes tortos e seu queixo era uma cachoeira vermelha.

- Filho de uma maldita rameira, meus... dentes, meus dentes. – Gritava o homem com a boca arruinada. - Vou esfolar você como fizeram com s...

A boca de Pander foi atingida novamente, agora pelo cabo da lança de um dos soldados gárgula a volta deles. Quando olharam não sabiam dizer qual dos soldados havia deferido o golpe, viram apenas os dentes incisivos centrais do rã nadando lá e cá sobre o solo inundado.

- Belos dentes. - Observou James Rude, rindo de pander que tentava lidar com a dor em silêncio enquanto mais sangue transbordava de sua boca.

- Irmã branca, tenha piedade de nós – choramingou Piper, o prisioneiro a frente deles, antes de começar a debater-se terrivelmente em desespero.

- Que há com ele? Perguntou Daero, o jovem preso junto a Kron.
- No caminho para o inferno todos querem se convencer que são inocentes. Respondeu James, duas fileiras atrás.

Um oficial aproximou-se de Piper, o prisioneiro que se debatia e choramingava logo a frente da fileira de duplas de cativos.

- Cale-se, estuprador de merda – Esbravejou o oficial, iniciando uma sequência de chutes no preso que se encolhia.
- Santa Irmã Branca, olhem – Disse tórus, o forte prisioneiro de pele escura ao lado de Piper, apontando com o queixo para a escuridão do horizonte.

O oficial virou-se e paralisou. Willan Shoes começou a tremer em suas corrente ao lado de Pander que permanecia calado, com os olhos que pareciam pratos, colados na escuridão. Parece que agora ele aprendeu a manter a língua e os dentes dentro da boca.

- Guerreiro de Luz... inflija a escuridão com sua espada cintilante. Gui... guie seu... servo e proteja-o com seu escudo branco... – Will recitava o Vectro, curvado, quase mergulhando a face na água suja que passeava pelo chão.

Foi quando um relâmpago explodiu no céu e derramou seu brilho no mundo. Todos eles viram aquilo no mar. Uma silhueta negra sobre um fundo brilhante. Gigantesco. Alguns dos prisioneiros havia urinado nas calças com aquela visão aterradora, Kron sentiu o cheiro de mijo no ar úmido. A visão daquilo foi a única coisa que fez o capitão Bolton Boes calar a boca desde que ele embarcou no navag. As últimas palavras que ele ouviu o velho homem pronunciar foi: - Antares, tenha piedade de nós – Após isso o rosto do homem parecia fechado e duro como rocha. As piadas acabaram.

Um prisioneiro, em pânico agarrou a perna de um dos soldados de Spartânia implorando por misericórdia e perdão, a misericórdia veio rápido através do punho, calçado com uma manopla de aço negro, que desceu como um relâmpago na face do homem.

- Vamos todos morrer – Festejou Pander, rindo como se já tivesse se esquecido dos dentes que perdera.
Os homens se desesperam, enlouquecem e os Deuses zombam por detrás do grande manto azul do céu. Pensou, enquanto olhava os homens aterrorizados ao seu redor, prisioneiros ou não. Os soldados mantinham sua postura, implacável, como deveria ser. Esses são homens de verdade, devem dar trabalho para morrer.

A silhueta trevosa projetava-se do mar em direção aos céus, colossal, rochas pontiagudas tão altas que poderiam arranhar a barriga das nuvens. No horizonte, parecia um emaranhado de tentáculos gigantescos que a todo custo desejavam agarrar as estrelas atrás do céu tempestuoso. A forma grotesca subia em espiral, contorcendo-se em diversos tentáculos rochosos. Uma estrutura infernal, imponente. Em sua volta, centenas de pedras afiadas brotavam do mar, como facas que atravessam a pele. Só eram visíveis durante os clarões, na escuridão pareciam deslizar sobre as ondas traiçoeiras, dentes prontos para morder o casco do navio de um capitão desatento. Kron não esperava que Bolton fosse esse tipo de capitão. Décadas no mar devem tê-lo deixado tão cauteloso quanto brincalhão. Mesmo assim uma das rochas passou sorrateira e silenciosa a alguns palmos do casco fazendo com que Boes acordasse do transe proporcionado pela visão. Então o homem voltou a esbravejar com a tripulação e a brigar ferozmente com o leme.




Voltou a olhar o colossal pináculo rochoso no meio da tempestade. Então é aqui que eles querem que termine meus dias. Os prisioneiros continuavam seus lamentos, orações e súplicas desesperadas. Era uma visão para fazer qualquer homem feito borrar as calças. Ele sabia que a prisão de Helldomer devoraria metade daqueles homens, apenas para abrir o apetite. Os restantes seriam consumidos pelo tempo, por doenças, pela forca ou machado de algum carrasco infernal. Mas Kron não, ele sabia que morreria rapidamente por aquela chaga sombria. Espantava-se por ter resistido há tanto tempo desde que contraíra aquilo. Quanto tempo ainda tenho? Os deuses não responderam. Ele possuía apenas um desejo: ter tempo o suficiente para enterrar uma adaga na garganta de seu amado rei e vê-lo se afogar no próprio sangue. Enquanto os outros suplicavam por suas vidas, Kron pedia aos Deuses que ele pudesse levar apenas uma alma junto à dele diretamente para as profundezas do inferno...

... a alma do seu amado Rei.

O Regulador

Vejo aquele lampião queimando baixo em nossa casa.
E ainda que eu sinta vontade de chorar, eu juro que esta noite, eu não vou mais chorar.

Quantas vezes eu rezei
Que eu ficaria perdido ao longo do caminho?

Sonho com as penas de anjos colocadas debaixo de sua cabeça.
O pêndulo do regulador a balançar.

Venha comigo e ande a mais longa milha.

A sua carteira é de couro? A sua carteira é gorda?
Para, nem um ano depois, ele o ter deitado sobre suas costas.
Você deveria ter fechado as suas janelas e conseguido outro cachorro.
Você deveria ter acorrentado todas as portas e mudado todas as fechaduras.

E quantas vezes eu orava
Os anjos me acelerariam

Sonho com as penas de anjos colocadas debaixo de sua cabeça.
Pêndulo do regulador a balançar.

Venha comigo e ande a mais longa milha.


Scores: Klaus Badelt / Hans Zimmer
Tema de Maria: Nouvelle Vague - Don't you forget about me



Tema de encerramento: Clutch - The Regulator

sábado, 23 de março de 2013

MALARIA


MALARIA é um curta animado que conta a história de Fabiano, um jovem mercenário que é contratado para matar a Morte. O curta combina técnicas de Origami, Kirigami, Time lapse, ilustração em nanquim, história em quadrinhos e velho oeste. Com uma ótima narrativa, personagens intrigante e uma sonoplastia caprichada, Edson Oda, nos presenteia com um trabalho primoroso. Confiram:

Crônicas de Kaychiro: Os Filhos da Penumbra - Prólogo


Em um continente, onde a guerra se alastra como um vírus, os filhos da penumbra tentam sobreviver escondendo-se de tudo e todos. Amaldiçoados por todas as raças de Ábani, eles se abrigam em um lugar familiar a eles, nas sombras. Mas até quando?

Atualização: Foram implementados alguns trechos de trilha sonora para ajudar na imersão durante a leitura do texto.





Eram poucos os momentos em que ela havia sentido uma pontada de felicidade em seu coração, se é que ela tinha um coração, ou pelo menos, um coração como o de todos os humanos. Embora sua aparência semelhante com um, cinco dedos em cada mão, dois olhos, um nariz. Alguns detalhes como seu cabelo branco neve e seus olhos prateados como uma medalha polida de váhrix, afastava dela qualquer alma viva por onde quer que passasse. Essas características não a faziam uma criatura feia, muito pelo contrário, ela sempre fora muito bela, mesmo andando apenas em trapos como já havia acontecido muitas das vezes que tinha que fugir e esconder-se. Aquela aparência díspar e única não a tornava um monstro, mas revelava exatamente sua origem, e isso, ironicamente, fazia as pessoas encará-la como se fosse um. Apesar de todo o sofrimento que passara por seu corpo, Eladriel, como ela própria havia se batizado, acreditava em seu interior que um dia conseguiria encontrar descanso e paz para si mesma, naquele mundo cruel e impiedoso, o que ela não sabia é que esse dia ainda não havia chegado...

...definitivamente não havia chegado.

Ela passara uma situação parecida como aquela no passado, em sua infância, mais precisamente. Era uma vaga lembrança nublada em sua mente. Já faz tanto tempo. A única imagem que permanecia era a grande silhueta escura sádica e sorridente que se movimentava na escuridão, tocando-a. Isso foi há muitos anos, em outra vida, possuía até mesmo um outro nome e, mesmo assim, ainda podia sentir o forte inebriante cheiro de mofo, suor e vinho-mel nele.

Naquela noite havia quatro silhuetas trevosas como aquela do passado, com olhares sádicos e sorrisos sinistros, imóveis ao redor dela num cômodo umbroso empoeirado.
O reflexo das chamas, que consumiam a aldeia do lado de fora daquele estabelecimento, dançava funérea ao som de gritos e guinchos de desespero na ponta da lamina que um dos homens empunhava.

Eladriel sentia gosto de sangue em sua boca onde um deles esmurrara derrubando-a no chão. Apenas terminem isso rápido, por favor. Suplicava em sua mente.
De certa forma ela não se importava mais com a dor, estava acostumada com o gosto de seu próprio sangue. Sentia o ar frio noturno invadindo sua roupa rasgada para beijar seu corpo. Seus pelos quase que translúcidos eriçavam uma vez mais com o terror da situação.

As quatro figuras escuras aproximavam-se rugindo como animais, cuspindo palavras, um para o outro, em uma língua que ela mal podia entender. Eles são homens ou animais?Apesar da aparência humana ela não sabia dizer o que eram na realidade, homens se transformam em animais quando vão para a batalha, mas sabia que o que quer que fossem eram menos abominados que ela. Empurravam-se para decidir qual deles arrancaria o primeiro pedaço de sua carne alva. Um arregalava os olhos com o brilho de chamas dançantes, o outro molhava os lábios em uma expressão esfomeada, o terceiro, com um sorriso brincalhão, desamarrava o gibão no canto mais escuro do pequeno quarto, enquanto o quarto homem avançou e puxou de forma brutal as ruínas do que restou de suas roupas. Seu corpo ergueu com a força descomunal do homem. Suas vestes transformaram-se em trapos que se espalharam por todo cômodo e ela caiu com um baque abafado, completamente nua, sobre o piso gelado de madeira Pinhopedra. Ela se encolheu mais na tentativa de cobrir sua nudez do que se proteger do frio. As chamas crepitavam através dos grossos vidros da janela do quarto, iluminando metade das faces de cada um dos homens famintos, com olhares ainda mais famintos. Ela rastejou para a outra extremidade do ambiente, para as sombras. As trevas abraçaram seu corpo pálido como uma mãe abraça um filho que retorna para casa. Um dos soldados puxou-a com força por seu tornozelo direito trazendo-a novamente para a região mais clara. Se eu resistir, eles vão me bater ainda mais. É isso que eles fazem, é isso que eles sempre fizeram. Pensou, com as unhas cravadas no chão. A dor lacerante atravessou seu corpo quando sentiu as unhas se desprenderem da carne quando o homem puxou-a com mais força. Gemeu de dor e experimentava o tremor dominar seu corpo. Uma das sombras pegou-a pelo pescoço. Seu punho era tão grande e forte que podia quebrá-la ao meio com a facilidade que quebraria um graveto. Sentiu um segundo homem sobre ela, e aquele que agarrava sua garganta sacudiu sua cabeça proferindo para os outros uma zombaria qualquer sobre seu cabelo. Os outros riram alto. Um fio rubro escorria do nariz e esparramava-se no lábio e descia até o queixo. Com o punho, ele empurrou violentamente sua cabeça contra o chão. Aquilo fez um eco dentro de seu crânio.



Ela podia ver Emilia caída nas sombras ao fundo, a boneca de pano de Trys, filha única da mulher que a acolhera, dera-lhe o que vestir, comer e um trabalho para fazer. A senhora corpulenta estava sempre mandando-a fazer alguma coisa. Eldry tire isso daqui. Eldry ponha isso alí. Muitas vezes era bem cansativo. Eladriel não se importava, era algo que lhe trazia um calor dentro de seu peito, algo reconfortante. Então, ela fazia com muito gosto e Dona Kyna a deixou ficar o tempo que bem entendesse. Adorava as manhãs em que acordava com o delicioso cheiro de pão de cendra e café forte que a gentil senhora preparava para ela, Trys e seus clientes. Ela espreguiçava-se e descia as escadas, farejando o ar, sorrateira como um gato, para descobrir a mesa forrada de massas e doces que ela nunca imaginara existir. Dona Kyna sempre acordava antes de todos e era metódica com os horários e com o preparo de suas receitas, tudo deveria estar em completa ordem sempre que programado. Isso Eladriel aprendeu com duas ou três pancadas da dura colher de pau da mulher. Ela não gostava muito dos clientes pois, sempre que chegavam, ela tinha de se esconder. Mas aquilo era um preço baixo a ser pago pela vida pacata que ela tinha encontrado ali. No inicio foi difícil convencer Trys de que ela não era uma aberração, a pequena garota vivia fugindo dela, até que certa vez Eladriel encontrou a boneca Emília rasgada e, com um pouco de linha e alguns remendos, deixou-a como nova. Desde então a pequena não saiu mais do seu pé. Seria tão bom se todas as diferenças pudessem ser resolvidas com um pouco de linha e remendos - lembrou. Era a mais próxima que Eladriel poderia chamar de melhor amiga, afinal as duas, apesar da diferença de idade, tornaram-se inseparáveis.

Como a vida já havia lhe ensinado outras vezes - algo tão bom não dura para sempre, Eladriel - um dia aquela calmaria seria levada por uma tempestade, dessa vez, foi uma tempestade de espadas e fogo.

Lágrimas transbordavam e seus olhos estavam pregados em Trys que permanecia debruçada no chão sobre uma poça escura, com o olhar que ia além do horizonte, segurando Emília com a mão esquerda, que tinha um corte na barriga por onde a espuma esparramou-se. Olha Eladriel, foi a mesma coisa que fizeram com as entranhas da Senhora do pão de cendra. Eladriel estava farta de todo aquele sofrimento. Ela queria esconder-se, enfiar-se em um buraco escuro para nunca mais sair e lá nunca mais sofrer, talvez ela quisesse morrer. Desejava voltar para as trevas, ser consumida por seus tentáculos escuros e frios. Perguntava-se o motivo de sua existência, mas a pergunta era seguida de um grande silencio vazio em sua cabeça. Uma vez tentou tomar a própria vida, mas aquilo iria doer, então ela perdeu a coragem e desistiu da idéia rapidamente.

Através da janela podia ver a lua, a Gêmea Branca brilhando pálido sob o céu índigo com um halo dourado ao seu redor. Ao lado do pequeno e brilhante satélite, o Irmão Negro aproximava-se, escuro como azeviche, ansioso para encobrir a gêmeo menor. Está trazendo sua sombra sobre mim mais uma vez. Ela estava acostumada e se sentia segura nas sombras, afinal, era de lá que ela tinha vindo, não era? Lembrou de como o homem robusto agredia sua mãe por ter fugido e permitido que uma criatura como ela tivesse nascido. Talvez ele tivesse razão. Apesar dos cochichos e olhares de soslaio que as pessoas não evitavam lançar sobre ela, sua mãe sempre estava ao seu lado protegendo-a de seu pai e das outras pessoas, que preferiam vê-la morta a viver entre eles naquele distante vilarejo. Muitas noites, quando se deitava sobre rocha, palha, lama ou, raramente, em um colchão, tentava a todo custo lembrar-se da sensação de quando sua mãe mergulhava os dedos em seu cabelo afagando o emaranhado de fios brancos que cobriam sua cabeça e emolduravam seu delicado rosto de lábio avermelhado como pêra-coração. Muitas vezes, era em vão, em outras, ela acabava sonhando com aqueles dias - Mãezinha. Normalmente acordava tateando em busca da mão carinhosa, porém, era apenas o vazio que sentia ao fechar os dedos carecidos. Após muitos anos fugindo e se escondendo em buracos sujos e escuros ela pode reviver aquele carinho que tanto gostava ao lado de Ulfrick, o espadachim. Eladriel, em sua concepção, julgava aqueles os melhores momentos de sua vida. Apesar de algumas vezes sentir-se culpada por achar o carinho de Ulfrick melhor que o de sua mãe, no geral, ela estava feliz como nunca ao lado dele, até que tudo desmoronou, novamente. Isso tudo já foi... foi tudo levado... como poeira ao vento.



Tentou afastar as lembranças e acabou voltando ao quarto escuro. Sua face estava esmagada contra o chão e sentia dores nos joelhos, punhos, virilha, em seu rosto e nas pontas dos dedos. O mundo parecia chacoalhar e a dor rastejava por todo seu ser a cada arremetida do homem sobre ela. Não sabia se era o segundo ou o terceiro. Tentou se virar, mas parecia haver uma montanha sobre si. Ainda não terminou, fique quieta. Por que eles simplesmente não me matam? Por que sempre me machucam e me abandonam para sofrer? Pensou, sentindo seu peito ser atacado por uma intensa angústia.

-Olha só Agogh, a vadia acordou! – comemorou o homem sobre ela.
-Ah, maldito, teve mais sorte que eu. – Agogh respondeu afivelando a brúnea marcada pela batalha. – No meu turno parecia estar fodendo um maldito tronco de pinhopedra. – completou, fazendo risos ecoar dentro da taberna enquanto do lado de fora só havia gritos, lamentos e morte.

Lágrimas involuntárias brotaram de seus olhos e rolaram face abaixo até se desprenderem do rosto e saltarem para o solo empoeirado de madeira coberto com sombras. As lágrimas pareciam dançar no chão. Lembrou da canção que sua mãe cantava para ela enquanto a acariciava. – Era uma casa... muito engraçada... não tinha teto... não tinha nada... – cantou entorpecida pela dor, vendo o mundo girar e se despedaçar nas trevas. Não conseguia distinguir a realidade do pesadelo, tudo havia se tornado uma coisa só.

Foi quando ela viu aquilo dentro da escuridão, aqueles olhos, olhos que estavam sobre ela, a todo tempo estavam... há muito tempo estavam... esperando... e, então, aconteceu: o mundo tornou-se negro e havia apenas carne sangue e gritos de desespero.
Continua.

End music:




Um Afogamento

É o relance da reflexão
Formando padrões nos teus olhos.
É um revisitar irado
Com todo segundo esvaindo-se.

A ressaca veio para me levar
Guiada pelo sol escaldante.
Veja tudo ao nosso redor.
Veja tudo o que fizemos.

Por favor, alguém.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.

Há uma fresta pequenina.
Os enxames de gafanhotos cobrem o céu.
Talvez eu simplesmente desapareça ou se ao menos pudesse
Manter a minha cabeça acima da maré.

Por favor, alguém.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.
Estou me afogando aqui, alguém, por favor.
Não creio que eu consiga me salvar.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Not Meant To Be - Não era Para Ser



- Sua namorada está te traindo.

Essas foram as palavras de Bruno para Andrew naquela tarde em que marcaram de se encontrar na escadaria do colégio após as aulas do período matutino. O local estava deserto, os estudantes da manhã já haviam se dissipado e naquele dia não haveria aulas durante o período da tarde. Ouvia-se o raspar de folhas secas arrastadas pelo vento naquela tarde amarela. No primeiro instante pairou um sentimento de incredulidade de Andrew sobre as palavras do amigo, seguido por um silencio mútuo e incômodo que perdurou por alguns instantes.

- Impossível, pensou Andrew sentado ao lado de seu amigo ainda com o uniforme escolar que mesclava uma calça cinza e camiseta branca, fones simples pendurados ao pescoço que tocavam o trecho de um grupo não muito popular no Brasil, onde dizia: It's like one step forward and two steps back.
Desde que havia conhecido Patrícia, sua garota, a garota de sonhos, ou talvez não mais, estavam completamente conectados e em sintonia o suficiente para não precisarem procurar carinho em outras pessoas, ao menos Andrew não precisava, e até então acreditava que Patrícia estava satisfeita com todo mimos e amor que ele proporcionava a ela. De qualquer forma, Andrew acabava de ser jogado inesperadamente em um turbilhão de sentimentos. É mentira, só pode ser. Ele gostava muito dela para que aquilo fosse simplesmente toda a verdade. Deveria haver algum engano naquilo que o amigo lhe revelava, sempre havia um engano nessas situações e isso, hora ou outra, acabava acontecendo com todos os casais, mesmo com dúvidas estava decidido a acreditar que deveria haver uma explicação para o que quer que tenha acontecido. Ele está mentindo.

Em todo o caso, Bruno sempre foi seu melhor amigo, ele é praticamente meu irmão, por qual motivo criaria uma mentira dessas para me magoar. Se Bruno criaria ou não toda essa história de traição, uma coisa era certa: aquilo estava acontecendo, e seu subconsciente já buscava saída como um louco em camisa de força para aquele auê em que o amigo tinha acabado de lhe meter. Aquele pensamento rebatia freneticamente dentro de seu crânio quase que fazendo as terminações nervosas em seu cérebro entrarem em curto. Ele respirou, com a maior calma que conseguiu, se é que isso era possível, disse ao garoto, também com o mesmo uniforme, sentado ao seu lado:

-Patrícia sempre conversou comigo sobre tudo e qualquer situação sobre sentimentos dela, Bruno, não vejo lógica nisso, cara. Por que ela iria me trair assim, sem mais nem menos?

-Seguinte, Andrew. - Ele fez uma breve pausa. - Sou seu amigo desde que me conheço por gente e posso te garantir que revelar isso para você é uma das piores coisas que poderia fazer na vida. Eu nunca te chamaria com urgência aqui hoje para fazer piada ou mentir a respeito de assunto tão sério, mano. Não estou gostando nada de ter que abrir seus olhos para o que está acontecendo, mas como seu amigo...
Andrew engoliu em seco. Ela teria me contado. Eu iria perceber. Sentiu seu mundo começar a ruir... novamente.

... É meu dever te falar a verdade. Terminou Bruno.

O suor brotava de seus poros e escorria por sua fronte, enquanto suas costas já estavam por inteira ensopada. Sentia o coração bater em sua garganta, mas não sabia se era desespero, tristeza ou ódio... ódio, talvez. Por quê? - se perguntava, sentado, inconformado com a cabeça apoiada na ponta dos dedos. Era uma visão miserável. E a face de Bruno revelava que aquela era uma situação difícil para ambos, pois saber que havia acabado de sacrificar a felicidade do seu melhor amigo era algo difícil de tirar da consciência, ainda mais um amigo que esteve sempre ao seu lado, principalmente nos momentos mais complicados de sua vida, um verdadeiro amigo, assim era Andrew para Bruno. O que Bruno não sabia é que, a partir daquele momento, as coisas se tornariam muito diferentes, uma tempestade se aproximava e as folhas raspavam ainda mais pelo chão áspero da escadaria de concreto da escola onde eles estavam sentados. Não havia ninguém, além dos dois rapazes e as taciturnas arvores de caules agitados que castigavam a escadaria com suas folhagens, no local. Vez ou outra ouvia-se automóveis cruzando a rua do lado de fora dos portões do colégio deserto.

Imagens inundavam a mente de Andrew, já não tinha mais o controle de seus pensamentos e enquanto fechava os olhos com força para tentar controlar as lágrimas que vinham sem serem chamadas, o aperto na garganta era cada vez mais difícil de suportar.

Bruno pousou a mão esquerda sobre as costas do amigo e se manteve em silêncio até ele voltar a ter condições de continuar a conversa.

- Como foi que você ficou sabendo disso? Perguntou ainda com a cabeça baixa.

- Foi Yasmin quem viu. Após pensar bem ela me contou e eu achei que você deveria saber. Pedi para ela manter isso em segredo e evitar comentar sobre isso com o resto do pessoal. Respondeu Bruno com receio de magoar ainda mais o amigo.

- Yasmin? - Cuspiu as palavras ironicamente e com uma parcela de irritação. – Você sabe muito bem que ela me odeia. Ela muito bem poderia armar tudo isso e fazer sua cabeça para vir me dizer isso. Agora mesmo ela deve estar se rachando na masmorra que ela chama de quarto.

- Andrew, você conhece muito bem a Yasmin, ela pode ter todo aquele jeitão esquisito dela, mas eu e você sabemos muito bem que independente se ela gosta de você ou não, ela não suportaria ficar calada sabendo que uma pessoa de seu círculo de amizade esta sendo enganada. Você sabe disso, não tente se iludir, ela quebrou a cara de muitos idiotas por menos que isso.

O nó na garganta se apertava ainda mais dificultando a respiração, é verdade, ele sabia que era. Pensou em Patrícia novamente. Três anos, ele repetia em pensamento. Ela sempre foi linda, nunca se esqueceu do momento em que trocaram os primeiros olhares. Ele com sua câmera semi-profissional, tirando fotos de tudo que é canto no primeiro dia do terceiro evento de animação japonesa realizado em uma das maiores faculdades da cidade, até que a lente de sua maquina focalizou a beleza da garota enquanto posava para uma dúzia de fotos.

Aquele foi o momento em que o tempo congelou completamente, a visão foi o bastante para que não conseguisse pensar em mais nada. Ela lhe enfeitiçou de tal forma que não soube como ou por que aquilo havia acontecido!

Aqueles olhos verdes atraiam os flashes e sem que ele percebesse já estava clicando mais de uma dezena de fotos da garota que realizava o cosplay de Sakura Card Captor tão perfeitamente quanto ele podia julgar. O bacro mágico rodopiava e dançava entre seus dedos calçados por um par de luvas cor de rosa enquanto ela imitava os mesmos movimentos da personagem do seriado animado japonês baseado no mangá criado por um grupo de desenhistas que se intitula como “CLAMP” que segundo as integrantes significa “uma pilha de batatas”. Quando ela girou e terminou o movimento mirando aqueles olhos nele, com seu vestido rosado que se agitava como um sino badalando, o rapaz pode sentir o impacto em seu peito, foi uma batida mais forte, foi como receber um tiro, mas de dentro para fora, uma batida de coração diferente de todas as outras que ele já havia sentido em toda sua vida, aquilo era um sinal. Sinal de que? Pensou. O nerd branquelo, raquítico, espinhento e corcunda da escola enfim encontrou uma garota pela qual valia a pena morrer? Sim, por ela teria esse prazer, ele e toda a horda de otakus que estavam naquele dia de evento. Era bela, com aquelas safiras no olhar que mais parecia um profundo mar esverdeado perfeitamente emoldurado por mechas de cabelos castanho claros, quase dourado, sem comentar a maneira que ela colocava a franja atrás de uma das orelhas ao posar para uma nova foto, aquilo o enlouqueceu, alias, faria qualquer rapaz da horda de suicidas de plantão, já citada, criar um fã clube para aquele anjo que se materializara em frente aos olhos dele.

Andrew por toda sua vida carregou escondido em algum lugar de seu subconsciente o modelo de parceira ideal, e quase não podia crer que aquele arquétipo exato estava em sua frente tão próxima a ele. Aproximou-se dois passos, completamente hipnotizado e pode sentir seu perfume, A garota ainda continuava a esbanjar atenção e variar as posições da personagem que imitava aos fotógrafos que por ali passavam e se aglomeravam ainda mais querendo levar para casa ao menos uma fotografia daquela musa, mesmo sendo na resolução mais chula de um celular Xing-ling.

Ao fundo ouvia-se a voz da oriental, Lena Park cantando a clássica música, “You raise me up” do dueto irlando-noruêgues composto pela violinista Fionnuala Sherry e pelo pianista Rolf Lovland. A canção fora regravada quase que cento e cinqüenta vezes, aquela era em japonês e faz parte da trilha de uma animação chamada “Romeu X Juliet”. Parecia que tudo seguia o script de um filme romântico que garotas se derretem ao assistir uma cena igual aquela.

Kogoeru arashi no yoru mo, Mada minu kimi he tsuzuku. Cantava em um êxtase de emoções a garota nas caixas de som de um stand logo detrás dele. Era algo como: “Agora, até mesmo nas tempestades ferozes da noite, Até mesmo quando não vejo você, eu caminho em sua direção.”

O perfume, Aquela fragrância ocasionou uma leve tontura nele causada pelo aceleramento das batidas do coração, fortes batidas que faziam até mesmo sacudir sua camiseta branca estampada com a figura do personagem Sneak da série Metal Gear Solid com uma frase abaixo: Sneak gonna eat you. Definitivamente uma frase que garotas entendidas não achariam graça no duplo sentido da coisa. A dopamina, norepinefrina e feniletilamina já tinham sido injetadas pelo cérebro no organismo do rapaz, o rubor na pele, a umidade nas mãos se tornavam intensos e aquela bela visão, o cheiro pareciam causar uma explosão de sentimentos em seu ser. Elevação, energia intensa, falta de sono, paixão, perda de apetite e foco único. Foco único ele repetia batendo as fotos.

AAAI! – Gritou a garota tentando resgatar o próprio pé. Quando Andrew voltou a realidade, pode ouvir uma gritaria de pessoas enfurecidas. Sai da frente, mongão... Vá pra lá Mané... Idiota... Aew cabaço. Percebeu estar esmagando o delicado pezinho da sakura. Sentiu a temperatura de seu corpo despencar como se tivesse saltado de Bungee jumping, sem corda, em direção aos confins do pólo sul. Queria pedir mil perdões, mas seu cérebro o traiu e a única coisa que cuspiu de seu lábios, foi. – Foco único. Ainda com uma cara de palhaço sem graça quando ela voltou o olhar para ele. O sapatinho rosa fora cravado por marcas pretas do tênis sujo e batido do garoto desajeitado. Em um desespero intenso o braço do fotógrafo serpenteou pelo ar e mergulhou furiosamente em sua bolsa em busca de um pano. Disparou a mão para limpar o sapatinho da cosplayer que abaixou para retirar a sujeira deixada pelo pisão com a própria mão. Uuuuuuuh! Ouviram em coro a multidão que os cercavam após escutarem o baque abafado do choque das cabeças do casal. Os dois se olharam com careta de dor esfregando rapidamente o local da batida, se entreolharam e... riram. Eles riram um riso gostoso, e a multidão gargalhou alto junto a eles. Os dois riram por três anos, três maravilhosos anos eles riram e agora ele chorava, e o mundo ao seu redor ruía, e as pessoas iam gargalhar enquanto ele chorava e ela... ria.

A vadia ria.